sexta-feira, maio 21, 2010

 Lívio Oliveira*
“A MARGEM”
(UMA METÁFORA DA INCOMUNICABILIDADE)



Ozualdo Candeias, cineasta da Boca do Lixo, falecido  em fevereiro de 2007, realiza em seu filme “A Margem”, que inaugurou, para alguns, o movimento do Cinema Marginal em São Paulo e no Brasil, a fábula da solidão em meio à grandiosidade da metrópole. Numa obra que explora os efeitos mais profundos do “estar-só” diante do mundo surgem metáforas que buscam as explicações possíveis para as tormentas da alma perdida entre as impossibilidades do ser ilhado.

[Ozualdo Candeias]

         O filme bem poderia ser intitulado, pelo que já exposto, “A Ilha”, inclusive porque todos os elementos – obviamente também o rio e a ponte, originariamente atravessados pelos personagens principais, espécie de quarteto ensandecido e errante – terminam por nos trazer a idéia de que a metrópole (no caso, a cidade de São Paulo) é, em si própria, uma ilha. E projeta esse pensamento ao ponto de convencer que o homem, ele mesmo, é insulado no seu interior povoado de dúvidas e medos e nas suas respostas irrealizadas diante de uma busca eterna da felicidade e do amor.
         Ninguém – nenhum dos personagens – consegue produzir um diálogo consistente, racional e conclusivo no filme. Todos os diálogos são incompletos, imperfeitos, desviados do centro íntimo do assunto original, levando, quase sempre, pela confusão e balbúrdia criadas em torno das falas e dos comportamentos disformes, egoísticos e sem regras, à discórdia e à tragédia. A comunicação é, no fim de todas as contas, uma impossibilidade. Um louco, um aparente burguês, uma ingênua e sonhadora jovem, uma puta: Há um jogo evidente entre quatro personagens em que o roteiro se fulcra – que não se entendem e não se estendem um ao outro – através do qual se criam muralhas imaginárias, permitindo-se um aprofundamento do abismo invisível, cada vez mais amplo, que separa um indivíduo do seu “semelhante”.
         A impressão que se colhe é a de que essa incomunicabilidade, num contexto e através de uma visão filosófica que possui traços nitidamente existencialistas e, a um certo ponto, niilistas, é a própria e acabada tragédia humana. Ali, onde não se consegue saber o verdadeiro valor de uma flor – colhida em meio ao lixo – melhor destruí-la ou tomá-la para si. A vida, nessa realidade cinza é desconstruída desde o seu início. Em tudo se inaugura uma descrença prévia e é aí que se inicia a batalha íntima, o conflito dos espíritos e, numa análise simbólica radical, a guerra entre povos, com a destruição mesma da idéia de civilização. Surgem perguntas: De que adianta tanta tecnologia, tantas inovações, tantas riquezas, patenteadas pela enormidade da cidade central, metrópole crescida? Onde está mesmo a civilização que se quer afirmar como presente? Ora, tudo se esvai no ar, diante da solidão profunda dos homens e mulheres que vivem sob tal realidade opressiva! O crescimento e desenvolvimento urbano, que deveriam incluir a todos, terminam por se transformar no mais cabal sistema de exclusão.
         A religião é, no filme, uma outra impossibilidade. É mais uma tentativa, em vão, da salvação do homem. Uma igreja encrustrada em meio ao mato e aos detritos – com um padre, ou um santo mesmo (seja lá como se queira representar o personagem surgido inusitadamente), que dorme e acorda num completo alheamento e que se comporta, num momento posterior, mais como um agente burocrático da fé do que um condutor das almas ao encontro de um Deus que se idealiza e se busca – demonstra a todos que ali se encontra um abismo que cresce, mais uma impossibilidade, ampliando e corroborando a própria idéia de morte, que, por si só, já resume toda a desesperança humana.
         A cena de um casamento impossível, em que uma mulher negra rouba um vestido branquíssimo e se veste para um casamento ilusório em meio a toda a sujeira ao seu redor, é a marca exata dessa quebra ou inocorrência de liames, de vínculos de humanidade entre os personagens tão díspares, tão distintos, tão exilados de si e entre si.
         Apesar de tudo, teimam os personagens em permanecer juntos, não se sabendo em busca de qual catástrofe final (ou não?!). Atravessam a ponte unidos e, ainda assim, ingressam no mesmo barco, que segue para o meio do rio (aqui o filme parece fazer uma alusão ao importante “Limite”, de Mário Peixoto) sem um destinatário exato, somente a dúvida, a incerteza, a exercitada desilusão.
Talvez o que Candeias tenha explicitado em “A Margem” seja a própria demonstração do mais cabal fracasso do homem sobre a terra, o que inclui todas as raças, credos, classes sociais (o filme, a meu ver, transcende esse aspecto, o do conflito de classes, indo além, ao conflito íntimo humano mesmo,  apesar da análise de muitos que o consideram uma película eminentemente de cunho social-político). Esse fracasso absurdo contextualizado em “A Margem” é, definitivamente, o de não ter chegado a humanidade a conhecer a si mesma.



Ficha Técnica do filme:

Brasil,1967
Produção: Ozualdo Candeias e Michael Salddi
Direção, argumento e roteiro: Ozualdo Candeias
Fotografia: Berlamindo Mancinni
Sonografia: Júlio Perez Caballar
Cenografia: José P. Silva
Montagem: Máximo Barro
Música: Luiz Chaves e Zimbo Trio
p&b, 35mm, 96minutos

Com Mário Benvenutti, Valéria Vidal, Bentinho, Lucy Rangel, Tele Kare, Paula Ramos, Brigitte, Ana F. Mendonça, Paula Gaeta, Nelson Gaspari, Dantas Filho, Luciano Pessoa, Luiz Alberto, Virgílio Sampaio, José Licneraki, Zimbo Trio.Prêmios: melhor diretor e música para Luiz Chaves (Prêmio Governador do Estado de São Paulo, 1967), melhor diretor, atriz para Valéria Vidal e música para Luiz Chaves (prêmio Instituto Nacional de Cinema, 1967) e menção honrosa para Ozualdo Candeias e Valéria Vidal (III Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, 1967).

*Editor [ AUTOR DO ARTIGO]

[*Lívio Oliveira é Procurador Federal, escritor e poeta. É ex-Presidente da União Brasileira de Escritores do Rio Grande do Norte (UBE/RN). Também é membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN e do Comitê Diretor da Aliança Francesa de Natal/RN. Publicou os livros “O Colecionador de Horas” (2002), “Telha Crua” (2004), “Bibliotecas Vivas do Rio Grande do Norte” (2004), “Pena Mínima” (2007), “Dança em Seda Nua” (2009), além do CD “CINECLUBE” (2009). Ganhou os prêmios literários Othoniel Menezes (Funcarte- Natal/RN - 2004) e Luís Carlos Guimarães (FJA/RN-2004). Contribui e contribuiu, com seus textos, para diversos jornais e revistas. 
Blog:- www.oteoremadafeira.blogspot.com]


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Um comentário:

  1. Caros Editores,
    Parabéns pela Revista, e por esta iniciativa do Cine Clube, não é possível isolar as artes cênicas dentro de uma revista como esta.
    Adorei o artigo , parabéns ao Editor Lívio Oliveira, sou como ele,um cinéfilo.
    Espero novas matériassobre cinema.
    Mário Elias de Araújo
    Barra da Tijuca - RJ

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