Easy Rider – SEM DESTINO
Qual busca? Qual viagem?
A busca. O encontro? Caminhos tortuosos (drogas, sexo, rock’n roll, acidentes, incidentes, crise, crime, morte) e os desvios no caminho dos aventureiros, doces aventureiros que, sob sol e lua, seguiam um roteiro utópico de vida, uma estrada longínqua para fora de si próprios.
A busca frenética se dava no exterior de si mesmos, no que está fora do homem, lembrando a todo instante e impondo à realidade a frase atribuída a Lennon:
-“Eu já estive em vários lugares e só me encontrei em mim mesmo."
As últimas consequências eram o que queriam e o que ditava o comportamento errante dos dois motoqueiros que cruzavam as estradas dos EUA. A morte, o fim bizarro e súbito, após toda uma trajetória de aventuras, de delícias e prazeres e perigos (voluntários ou involuntários) foi o que conseguiram, foi o que sobrou dos sonhos em pedaços, assim como os restos de suas amadas motocicletas destruídas pela estupidez dos homens.
Peter Fonda e Dennis Hopper conseguiram magistralmente nesse filme traduzir o sentido de uma época, de um sonho, mas um sonho confuso, ainda inidentificável – estudado e esmiuçado por todos – do movimento e da cultura hippies e depois deles. Talvez, também projetando os efeitos residuais no quadro atual da história frente àqueles anos de frenesi e de rebeldia, conseguir-se-á chegar às verdadeiras nuances!?
“Flower power” e “Peace and love”? A utopia, de alguma forma, chegou a vingar?!
O Rock’n Roll e seus hinos como a linguagem da época e as viagens psicodélicas e as reais nas estradas poeirentas por onde rolavam livremente as motos, as belas e possantes Harley-Davidson, clássicas como uma peça de Brahms, míticas como as pirâmides do Egito – hoje transformadas num ícone capitalista – carregavam disputados e ilegais dólares em seus tanques e mostravam facetas ambíguas dos dois personagens, sempre prestes e dispostos à subversão. Além disso, Jack Nicholson, no papel de um jovem advogado alcoólatra, envolvido contumazmente em enrascadas, representava a lei ambígua e frágil e completaria o trio nômade, como um intruso e trágico passageiro desse caminho sem fim, sem qualquer destino. Ficaria, como um indigente morto, no meio do caminho. Mas quem não ficou? Quem não fica por completar o caminho?
Nesse belo filme, Laszlo Kovacs – diretor de fotografia – consegue atingir o clímax das imagens, da representação complexa, por vezes árida, por vezes frutífera, da paisagem geográfica e humana dos norte-americanos, onde vagaram os dois motoqueiros em seus coloridos “alazões” metálicos e policromáticos, tão perdidos como o sonho de sua geração.
Produzido por Peter Fonda e dirigido por Dennis Hopper, o filme mostra uma eterna busca, simbolizada pela viagem em procura do Mardi Gras, festa folclórica assemelhada ao carnaval,
O sentimento e ação underground, como um estilo alternativo de vida dão a tônica e o ritmo. A moto, o aço motorizado, a máquina, são o moto-contínuo que se viabiliza na permanente troca e substituição de pneus, trabalho que se reportaria à engenhosa e vetusta troca das ferraduras dos cavalos (outras épocas!?). Nessa cena em paralelo traduz-se um sentido histórico da própria busca e evolução humanas.
Ter fé em sua época? Que fé eles nutriam? A não–fé, a não-crença, o desacreditar, o descrer? Eles saem de Los Angeles e vão para New Orleans. Pé na estrada! Algo buscam: outras paragens, outras paisagens. Montanhas, desertos, lagos; e outros lugares fazem o pano de fundo para a dramática e trágica realidade daqueles que não sabem o que realmente intentam.
Os caronas. Os caronas, com suas sempre angustiantes presenças, provocam os primeiros receios: “Tudo o que sonhamos está naquele tanque”. Essa frase denuncia, definitivamente, o sonho ambíguo, incompleto, etéreo e até ingênuo dos dois companheiros, quando se deparam com um terceiro a manejar a bomba de gasolina para encher o tanque de uma das “máquinas”.
Psicodelismo como solução também cinematográfica, fotografia mágica da vida em meio à poeira, ao vento, à natureza profunda. Hippies e sexo livre, haxixe, maconha, o café, o arroz do almoço: o que eles faziam era plantar para colher. E viriam a colher! A colheita sempre vem. Seja lá quando e o que for!
A memória dos índios, os verdadeiros donos da terra, é demonstrada em cena em que os ancestrais são cultuados e respeitados. Um povo quebrando tradições em buscas dos laços embrionários com o humano e tradições tão remotas quanto aqueles. Mais ambigüidades, mais indefinições, mais reflexões profundas. Mais viagens!
O compartilhar do alimento. Longos cabelos e barbas. Lagos, montanhas, desertos. Um advogado patético e bêbado que celebra a D. H. Lawrence “o primeiro do dia” e serve um trago de whisky. Óvnis. Mundos sem guerras, sem sistema monetário, sem líderes. Os “venusianos” é que teriam a autoridade real de dar o exemplo para nossa existência.
A bandeira americana, presente em todos os cantos, em todos os rincões, é um escudo usado pelo conservadorismo hipócrita já exibido historicamente. Uma vasão? E quando e como reagem à invasão e aos bárbaros que aportam nas areias de suas praias ensolaradas ou conquistando suas belas e jovens mulheres nas províncias mais inóspitas? E se forem eles “venusianos”?
Os contrastes expostos, como uma forte fratura, são de uma sociedade ambígua que se situa em parâmetros de preconceito e racismo. De que têm medo os americanos e todos os povos, enfim? Da liberdade? Da liberdade do outro?
–“É difícil ser livre quando se é comprado e vendido no mercado”.
A violência capitalista se dá exatamente e mais contundentemente contra a liberdade, a liberdade de escolha, a liberdade de ser diferente, a liberdade de viver conforme seu próprio estilo e desejo.
O filme toca, pontualmente, também em alguns aspectos religiosos e levanta, ao menos para observadores críticos e não tão católicos a pergunta fundamental: qual a diferença entre uma santa e uma puta? “Se Deus não existisse seria necessário inventá-lo” (eis a frase posta num prostíbulo em que os personagens se deliciam no trajeto). O vinho é o sangue de Cristo. E onde fica a santa? E onde fica a puta? Billy e Capitão América encontram tal dilema mítico decorrente da afirmativa de uma amante por profissão:
–“My name is Mary!”, diz a prostituta.
–“Meu nome é Maria!”.
É! O nome é Maria e provoca o desejo dos “guerreiros” errantes de voltarem ao útero materno, único lugar protegido. Maria é a única que nos protege!
O que predomina nos personagens é a ingenuidade da busca e do encontro de um idílio. Ou, então, o conhecimento mais cabal de que suas ações não têm mesmo um sentido mais nítido.
As paisagens e as horas variam e levam ao momento em que os negros, em New Orleans , fazem e festejam a música. A festa e o ácido compartilhado produzem efeitos lisérgicos nos personagens que lhe são reveladores (?), mesmo que por poucos instantes:
– “Creio em Deus Pai.. .”.
A indagação salta à mente: o cemitério onde se encontram e experimentam o ácido é onde habita Deus? Deus está ali? Ali tem morada eterna?
– “Nasceu da Virgem Maria...”
E a dicotomia se impõe, novamente, desafiando uma resposta: Onde a puta? Onde a santa? E o filho...?
–“Estou fora da minha cabeça”.
Estradas, pontes, fogueiras, matagais, pântanos, dias, noites, noites e dias. E as multinacionais se multiplicam na estrada: Esso, Enco. Eita! Mais dinheiro!
– “Nós estragamos tudo, Billy”.
Estradas, árvores, lagos.
–“Nós estragamos tudo, Billy”.
Premonições. A morte bizarra e inexplicável, pelas mãos de um estúpido. Onde a glória que buscavam? Rios. Risos nervosos.
– “Por que não corta o cabelo?”
Intolerância e medo ao diferente e à liberdade. Os EUA podem encarnar uma metáfora da liberdade? Conquistar dinheiro é se tornar livre?
Uma coisa é pensar na liberdade, outra é exercitá-la.
– “Estou fora da minha cabeça”.
Ficha Técnica:
Título original: Easy Rider
País/Ano: EUA/1969
Diretor: Denis Hopper
Duração: 91 min
Elenco: Peter Fonda, Denis Hopper, Jack Nicholson
[*Lívio Oliveira é Procurador Federal, escritor e poeta. É ex-Presidente da União Brasileira de Escritores do Rio Grande do Norte (UBE/RN). Também é membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN e do Comitê Diretor da Aliança Francesa de Natal/RN. Publicou os livros “O Colecionador de Horas” (2002), “Telha Crua” (2004), “Bibliotecas Vivas do Rio Grande do Norte” (2004), “Pena Mínima” (2007), “Dança
Blog:- www.oteoremadafeira.blogspot.com]
Brilhante! Revivemos 'aqueles' tempos... Parabéns pelo texto, que é um brinde ao sonho!
ResponderExcluirObrigado, Ricardo, pela leitura e pela sensibilidade demonstradas.
ResponderExcluirAbraço.
Lívio Oliveira