sexta-feira, maio 28, 2010

Easy Rider – SEM DESTINO


Easy Rider – SEM DESTINO
  
Qual busca? Qual viagem?


                A busca. O encontro? Caminhos tortuosos (drogas, sexo, rock’n roll, acidentes, incidentes, crise, crime, morte) e os desvios no caminho dos aventureiros, doces aventureiros que, sob sol e lua, seguiam um roteiro utópico de vida, uma estrada longínqua para fora de si próprios.

A busca frenética se dava no exterior de si mesmos, no que está fora do homem, lembrando a todo instante e impondo à realidade a frase atribuída a Lennon:

-Eu já estive em vários lugares e só me encontrei em mim mesmo."

As últimas consequências eram o que queriam e o que ditava o comportamento errante dos dois motoqueiros que cruzavam as estradas dos EUA. A morte, o fim bizarro e súbito, após toda uma trajetória de aventuras, de delícias e prazeres e perigos (voluntários ou involuntários) foi o que conseguiram, foi o que sobrou dos sonhos em pedaços, assim como os restos de suas amadas motocicletas destruídas pela estupidez dos homens.

 Peter Fonda e Dennis Hopper conseguiram magistralmente nesse filme traduzir o sentido de uma época, de um sonho, mas um sonho confuso, ainda inidentificável – estudado e esmiuçado por todos – do movimento e da cultura hippies e depois deles. Talvez, também projetando os efeitos residuais no quadro atual da história frente àqueles anos de frenesi e de rebeldia, conseguir-se-á chegar às verdadeiras nuances!?

“Flower power” e “Peace and love”? A utopia, de alguma forma, chegou a vingar?!

 O Rock’n Roll e seus hinos como a linguagem da época e as viagens psicodélicas e as reais nas estradas poeirentas por onde rolavam livremente as motos, as belas e possantes Harley-Davidson, clássicas como uma peça de Brahms, míticas como as pirâmides do Egito – hoje transformadas num ícone capitalista – carregavam  disputados e ilegais dólares em seus tanques e mostravam facetas ambíguas dos dois personagens, sempre prestes e dispostos à subversão. Além disso, Jack Nicholson, no papel de um jovem advogado alcoólatra, envolvido contumazmente em enrascadas, representava a lei ambígua e frágil e completaria o trio nômade, como um intruso e trágico passageiro desse caminho sem fim, sem qualquer destino. Ficaria, como um indigente morto, no meio do caminho. Mas quem não ficou? Quem não fica por completar o caminho?





Nesse belo filme, Laszlo Kovacs – diretor de fotografia – consegue atingir o clímax das imagens, da representação complexa, por vezes árida, por vezes frutífera, da paisagem geográfica e humana dos norte-americanos, onde vagaram os dois motoqueiros em seus coloridos “alazões” metálicos e policromáticos, tão perdidos como o sonho de sua geração.

Produzido por Peter Fonda e dirigido por Dennis Hopper, o filme mostra uma eterna busca, simbolizada pela viagem em procura do Mardi Gras, festa folclórica assemelhada ao carnaval, em New Orleans. Quase como uma peregrinação religiosa a uma espécie de Meca sagrada, vão alimentando crenças e desejos para o cumprimento (in)disciplinado de uma meta (qual?). O desejo, por exemplo, de um deles, de ter uma mulher ideal, o sonho de “viajar para mais longe” (numa das falas de Hopper)?, intenção posta, canalizada para as drogas, nas ilusões que se perderam, pulverizadas pela ignorância e pelo preconceito disseminados na cultura e sociedade americanas.

O sentimento e ação underground, como um estilo alternativo de vida dão a tônica e o ritmo. A moto, o aço motorizado, a máquina, são o moto-contínuo que se viabiliza na permanente troca e substituição de pneus, trabalho que se reportaria à engenhosa e vetusta troca das ferraduras dos cavalos (outras épocas!?). Nessa cena em paralelo traduz-se um sentido histórico da própria busca e evolução humanas.

Ter fé em sua época? Que fé eles nutriam? A não–fé, a não-crença, o desacreditar, o descrer? Eles saem de Los Angeles e vão para New Orleans. Pé na estrada! Algo buscam: outras paragens, outras paisagens. Montanhas, desertos, lagos; e outros lugares fazem o pano de fundo para a dramática e trágica realidade daqueles que não sabem o que realmente intentam.

Os caronas. Os caronas, com suas sempre angustiantes presenças, provocam os primeiros receios: “Tudo o que sonhamos está naquele tanque”. Essa frase denuncia, definitivamente, o sonho ambíguo, incompleto, etéreo e até ingênuo dos dois companheiros, quando se deparam com um terceiro a manejar a bomba de gasolina para encher o tanque de uma das “máquinas”.

 Psicodelismo como solução também cinematográfica, fotografia mágica da vida em meio à poeira, ao vento, à natureza  profunda. Hippies e sexo livre, haxixe, maconha, o café, o arroz do almoço: o que eles faziam era plantar para colher. E viriam a colher! A colheita sempre vem. Seja lá quando e o que for!

A memória dos índios, os verdadeiros donos da terra, é demonstrada em cena em que os ancestrais são cultuados e respeitados. Um povo quebrando tradições em buscas dos laços embrionários com o humano e tradições tão remotas quanto aqueles. Mais ambigüidades, mais indefinições, mais reflexões profundas. Mais viagens!

 O compartilhar do alimento. Longos cabelos e barbas. Lagos, montanhas, desertos. Um advogado patético e bêbado que celebra a D. H. Lawrence “o primeiro do dia” e serve um trago de whisky. Óvnis. Mundos sem guerras, sem sistema monetário, sem líderes. Os “venusianos”  é que teriam a autoridade real de dar o exemplo para nossa existência.

A bandeira americana, presente em todos os cantos, em todos os rincões, é um escudo usado pelo conservadorismo hipócrita já exibido historicamente. Uma vasão? E quando e como reagem à invasão e aos bárbaros que aportam nas areias de suas praias  ensolaradas ou conquistando suas belas e jovens mulheres nas províncias mais inóspitas? E se forem eles “venusianos”?

Os contrastes expostos, como uma forte fratura, são de uma sociedade ambígua que se situa em parâmetros de preconceito e racismo. De que têm medo os americanos e todos os povos, enfim? Da liberdade? Da liberdade do outro?

–“É difícil ser livre quando se é comprado e vendido no mercado”.

 A violência capitalista se dá exatamente e mais contundentemente contra a liberdade, a liberdade de escolha, a liberdade de ser diferente, a liberdade de viver conforme seu próprio estilo e desejo.

O filme toca, pontualmente, também em alguns aspectos religiosos e levanta, ao menos para observadores críticos e não tão católicos a pergunta fundamental: qual a diferença entre uma santa e uma puta? “Se Deus não existisse seria necessário inventá-lo” (eis a frase posta num prostíbulo em que os personagens se deliciam no trajeto). O vinho é o sangue de Cristo. E onde fica a santa? E onde fica a puta? Billy e Capitão América encontram tal dilema mítico decorrente da afirmativa de uma amante por profissão:

–“My name is Mary!”, diz a prostituta.

“Meu nome é Maria!”.

É! O nome é Maria e provoca o desejo dos “guerreiros” errantes de voltarem ao útero materno, único lugar protegido. Maria é a única que nos protege!

O que predomina nos personagens é a ingenuidade da busca e do encontro de um idílio. Ou, então, o conhecimento mais cabal de que suas ações não têm mesmo um sentido mais nítido.

As paisagens e as horas variam e levam ao momento em que os negros, em New Orleans, fazem e festejam a música. A festa e o ácido compartilhado produzem efeitos lisérgicos nos personagens que lhe são reveladores (?), mesmo que por poucos instantes:

– “Creio em Deus Pai...”.

A indagação salta à mente: o cemitério onde se encontram e experimentam o ácido é onde habita Deus? Deus está ali? Ali tem morada eterna?

– “Nasceu da Virgem Maria...”

E a dicotomia se impõe, novamente, desafiando uma resposta: Onde a puta? Onde a santa? E o filho...?

–“Estou fora da minha cabeça”.

 Estradas, pontes, fogueiras, matagais, pântanos, dias, noites, noites e dias. E as multinacionais se multiplicam na estrada: Esso, Enco. Eita! Mais dinheiro!

– “Nós estragamos tudo, Billy”.

Estradas, árvores, lagos.

–“Nós estragamos tudo, Billy”.

Premonições. A morte bizarra e inexplicável, pelas mãos de um estúpido. Onde a glória que buscavam? Rios. Risos nervosos.

– “Por que não corta o cabelo?”

Intolerância e medo ao diferente e à liberdade. Os EUA podem encarnar uma metáfora da liberdade? Conquistar dinheiro é se tornar livre?

Uma coisa é pensar na liberdade, outra é exercitá-la.

– “Estou fora da minha cabeça”.

 
Ficha Técnica:
Título original: Easy Rider
País/Ano: EUA/1969
Diretor: Denis Hopper
Duração: 91 min
Elenco: Peter Fonda, Denis Hopper, Jack Nicholson


 Por Lívio Oliveira

[*Lívio Oliveira é Procurador Federal, escritor e poeta. É ex-Presidente da União Brasileira de Escritores do Rio Grande do Norte (UBE/RN). Também é membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN e do Comitê Diretor da Aliança Francesa de Natal/RN. Publicou os livros “O Colecionador de Horas” (2002), “Telha Crua” (2004), “Bibliotecas Vivas do Rio Grande do Norte” (2004), “Pena Mínima” (2007), “Dança em Seda Nua” (2009), além do CD “CINECLUBE” (2009). Ganhou os prêmios literários Othoniel Menezes (Funcarte- Natal/RN - 2004) e Luís Carlos Guimarães (FJA/RN-2004). Contribui e contribuiu, com seus textos, para diversos jornais e revistas. 
Blog:- www.oteoremadafeira.blogspot.com]

2 comentários:

  1. Brilhante! Revivemos 'aqueles' tempos... Parabéns pelo texto, que é um brinde ao sonho!

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  2. Obrigado, Ricardo, pela leitura e pela sensibilidade demonstradas.
    Abraço.
    Lívio Oliveira

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