quarta-feira, outubro 06, 2010

Repulsion - "Repulsa ao Sexo"
(Um bunker contra o desejo)
 
 
Por Lívio Oliveira

A belíssima Catherine Deneuve encarna nesse filme – o primeiro da intrigante trilogia do apartamento, feita pelo diretor Roman Polanski – uma frígida jovem atordoada com a presença do sexo oposto e que assume, gradativamente, uma condição esquizoide que a destroi como indivíduo, além de afetar tragicamente todos os que dela se aproximam.


Ainda muito jovem, a colossal atriz Catherine Deneuve vive o papel da manicure Carol Ledoux, certamente uma das personagens mais estranhas e mais ricas da história do cinema. Carol é uma estonteante loura nascida na Bélgica, tendo traços psíquicos complexos e que vive em Londres, na companhia de sua irmã mais velha, Helen, com quem estabelece laços de dependência e afeto quase que filiais.

Sintomas de transtornos psíquicos e sexualidade reprimida começam a transparecer, lenta e sutilmente, da personalidade ensimesmada de Carol. No trabalho, na rua, no próprio apartamento...esquecimentos, vazios psíquicos, olhares perdidos, alheamento e uma bizarra aversão a presença do sexo; na verdade, do sexo oposto, pelo qual demonstra ojeriza, nojo, repulsa. Tudo isso compõe o perfil da inquietante personagem que surpreende, de forma marcante e única, a cada nova cena. Nós, assistentes, tornamo-nos como que espécies de voyeurs, frente ao oculto que se desvela diante de nossos olhares perplexos.

O namorado apaixonado tenta, a todo custo, seduzi-la, conquistá-la, estabelecer o mínimo de contato corporal, o que seria absoluta e evidentemente comum na espécie de relação entre os dois sexos; porém, não para Carol. E essa estória arrastada entre os dois terminaria mal, muito mal. A insistência do desejoso – e quase desesperado – pretendente, leva-o a um fim absolutamente trágico, como trágico se tornaria o resto da trama.

Tudo começa a tomar uma radical transformação, principalmente quando se concretiza a prevista viagem – de duas semanas – da irmã, com o namorado (casado) meio cafajeste, para a Itália. O mundo íntimo de Carol inaugura um paulatino desmoronamento. Não há mais chão e começam a rachar os liames entre Carol e a realidade (e as rachaduras e buracos se dispõem em imagens por vários momentos do filme, com uma forte simbologia – uma delas simulando mesmo o formato de uma vagina).

As alucinações, antes as fantasias, tudo leva a um clima de terror psicológico, um suspense que vai afunilando as possibilidades de saída, de salvação, até que Carol se interna no apartamento, na obscuridade, na mais completa solidão, isolando-se de qualquer contato externo, este que se faz sentir unicamente pelas badaladas de um sino nos arredores.

Tudo caminha de forma assustadoramente trágica.

O namorado a procura e mesmo invade o apartamento, arrombando a porta. A frágil virgem, num momento de desespero extremo o golpeia muitas vezes com um candelabro e põe o corpo morto do ex-parceiro numa banheira cheia d’água. A alienação tremendamente nociva se completa com a presença – no apartamento – de um coelho morto, infestado de moscas (teria sido um prato a preparar, antes esquecido pela irmã na geladeira).

Vai-se agravando a realidade da moça, uma espécie de anjo e demônio de cabelos longos e dourados e olhos brilhantes: mais um crime, desta feita do proprietário do apartamento, que viera cobrar o valor correspondente ao aluguel. Morto cruelmente a navalhadas e, como a vítima anterior, removido da sala onde acontecera o desfecho terrível. As alucinações aumentam e Carol passa a ver e a sentir braços e mãos saindo das paredes, agarrando-lhe os seios, tocando em seu corpo imaculado. Em outras cenas, a proposição de estupro fica subentendida.

O desempenho de Deneuve é impressionante e assustador: os tiques nervosos, o olhar vago, a alienação mais plena diante da realidade do mundo. Sua personagem, antes da viagem da irmã, era vaidosa, vivendo a pentear os belos cabelos louros. No apartamento, deixa-se largar ao acaso e ao destino, um destino crudelíssimo, em meio a sangue e outros dejetos que se espalham pelo apartamento fechado, hermético, estranho e escuro.
Ao chegar de viagem, sua irmã se depara com o pior dos mundos: mortos dentro do apartamento, que tem a porta visivelmente entreaberta, arrombada. O grito que lhe escapa é de dor e de incompreensão. Apesar de vários avisos, inclusive de seu namorado cafajeste, não acreditava na gravidade do mal que acometia Carol. Esta, deixando seu braço pálido aparecer debaixo da cama, seu último refúgio (como o fazem as crianças), expõe a fratura mental que se estabeleceu à revelia de todos, exibe a fragilidade do funcionamento psíquico do ser humano. O ousado namorado (de suspeitíssimo caráter) da irmã a carrega para a sala, com um discreto sorriso cínico e vitorioso, como numa espécie de vingança sexual, decorrente do desejo que geralmente se atribui aos homens pelas suas cunhadas.

Carol está destruída psiquicamente, o apartamento está um caos em meio ao lixo. Ali travou-se uma guerra particular, com pelo menos três mortos: dois homens e o desejo de Carol. Aquele olhar perdido da criança loura na foto – um dos destaques finais do filme – em Bruxelas guardava o destino terrível da jovem Carol, enlouquecida, assassina, morta dentro de si própria, num apartamento que significava uma verdadeira casamata contra o desejo e a felicidade. Nesse filme, que lembra momentos também de Hitchcock (Psicose) e Buñuel (El), Polanski expõe as mais lancinantes dores (quando a dor imensa se instalava, no filme era o silêncio que se ouvia) que um ser humano pode sentir, a ponto de não mais perceber o entorno e a realidade do mundo, de perder a sensibilidade acerca de tudo e de todos e de se transformar num ser sombrio e monstruoso, negando a mais remota hipótese de transpor os limites de sua loucura e de trocá-la, definitiva e sabiamente pelo desejo e pela vida.



Ficha técnica:

Repulsa ao Sexo - Repulsion, Inglaterra, 1965, p&b, 105’

Direção: Roman Polanski; Roteiro: Roman Polanski e Gérard Brach; Produção: Gene Gutowski; Música: Chico Hamilton; Fotografia: Gilbert Taylor; Montagem: Alastais McIntyre; Elenco: Catherine Deneuve (Carol Ledoux); Ian Hendry (Michael); John Fraser (Colin); Yvonne Furneaux (Helen Ledoux); Patrick Wymark (senhorio); Renee Houston (Srta. Balch); Valerie Taylor (Madame Denise); James Villiers (John); Helen Fraser (Bridget); Hugh Futcher (Reggie); Monica Merlin (Sra. Rendlesham); Imogen Graham (manicure); Roman Polanski (músico).
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domingo, agosto 01, 2010

Scarface

* Lívio Oliveira
Polícia, política, corrupção, drogas, álcool, mulheres e gângsteres. Não necessariamente misturados nessa ordem, os componentes causam - certamemente - explosões previsíveis. Os ingredientes, um por um, já são motivadores de paixões e de problemas que podem ser irreversíveis, detonando outras realidades mais trágicas e que beiram o absurdo.

Nas duas versões do filme “Scarface”, uma de 1932, em preto e branco, dirigida por Howard Hawkes, outra, modernizada e mais sofisticada, de 1983, dirigida por Brian de Palma, esse “combo” explosivo se verifica.

Essa completa fusão ou confusão tem sempre fins trágicos e destruição, nos lados norte ou sul, seja em Chicago ou em Miami, as duas cidades-palco dos dois filmes em análise. Na verdade, é o lado negro que se ressalta e se instala quando a guerra se inaugura.

A traição é um dos componentes mais presentes nas duas obras que têm um eixo em comum: a corrupção dos políticos e dos homens e mulheres em busca de poder e de espaço num mundo estranho, muito estranho. Cobra engole cobra...e gângster mata gângster em busca de um ilusório “topo do mundo”.

O dinheiro é o principal combustível de toda a trama. Afinal, é o símbolo maior de uma sociedade decadente e perigosa.

A canalhice do gângster revela a hipocrisia da sociedade construída sobre os pés de barro da luxúria e da ascensão social contra a lei. Uma sociedade que elege o bandido sedutor como uma espécie de semideus que tudo pode à força do uso do gatilho e das armas liberadas facilmente pelas leis do Estado corrupto.

A um truculento e às vezes hilário italiano Tony Camonte (da 1ª versão) segue-se, no remake de 1983, um charmoso, sofisticado (mas não menos ensandencido e sombrio) personagem desempenhado por Al Pacino (Tony Montana), encarnando o papel de um imigrante cubano que tenta formar um império de tráfico de drogas e que põe tudo a perder em face da estranha paixão que nutre pela irmã. Uma irmã rebelde e que reflete o lado feminino daquele bandido que ganha a hegemonia das ruas, conquistando espaço e capital à custa de muitos tiros e sangue nas madrugadas. Nessa versão, à direção de Brian de Palma junta-se o roteiro e argumento de Oliver Stone sobre romance de Armitage Trail, que leva os personagens para os anos 80 e transfere o ambiente de Chicago para Miami.

Scarface (nessa segunda versão) é um dos filmes mais violentos já feitos e também um expoente de Hollywood no Cinema da década de 80. 
Em ambas as versões, há componentes incontornáveis:

1.Vê-se que a polícia resta quase impotente diante do crime organizado e frenético, alimentado pela própria sociedade e pelas leis do Estado;

2. Os jornais aproveitam a situação para venderem sensacionalismo, como o fazem até os dias de hoje;

3. Os políticos...bem, todos sabem o que os políticos fazem...

A ruína do criminoso se revela quando ele ultrapassa as poucas, pouquíssimas leis a que obedece. A covardia do gângster que assassina o homem recém-casado com sua irmã (que lhe faria uma surpresa, comunicando-o posteriormente que passara a uma vida mais séria) é “pecado mortal” que lhe vale o império do crime e a sua própria vida.

Não lhe valem mais metralhadoras, nem janelas com venezianas de aço. As balas da polícia atingem primeiro sua irmã, que, arrependida de tentar revidar o assassinato de seu marido, é a última a apoiar Tony, contraditoriamente. A culpa e o remorso pela morte da irmã agora o fazem revelar sua face covarde e medrosa. A irmã era como uma gêmea siamesa, que, morta, traria a mesma consequência ao seu louco irmão.

Enquanto agoniza, a irmã balbucia que seu marido morto não tinha medo, porém o irmão o tinha. Alguma “dignidade” sobrara ao marido defunto, portanto, diferentemente do bandido líder, que já anunciava sua condição de fraco, muito fraco. A única coisa que balbuciava o criminoso covarde ao ser encurralado pelos policiais prestes a eliminá-lo era: “Eu não sabia. Eu não sabia.”

É de se lembrar, como uma das curiosidades do filme mais recente, que foi censurado em muitos países, em face do uso repetido da palavra "fuck" (foda, em inglês), que aparece, simplesmente, 182 vezes. Há quem afirme que a banda Blink-182 adotou o 182 por causa do filme. Essa marca "fuck" só seria superada com o lançamento de Goodfellas ("Os Bons Companheiros", no Brasil) em 1990, em que a referida palavra aparece 246
vezes.

A sociedade é mesmo uma presa, ainda hoje, da força psicológica e da realidade negativa desses enlouquecidos brutamontes, em busca da conquista de um mundo “fácil” e falso. Mas, não é demais lembrar que é essa mesma sociedade que os cria e os alimenta.

Versão de 1932: Scarface (Scarface - A Vergonha de uma Nação)
Diretor: Howard HawksElenco:Paul Muni ... Antonio 'Tony' Camonte Ann Dvorak ... Francesca 'Cesca' Camonte Karen Morley ... Poppy Osgood Perkins ... John 'Johnny' Lovo C. Henry Gordon ... Insp. Ben Guarino George Raft ... Guino Rinaldo Vince Barnett ... Angelo Boris Karloff ... Gaffney Purnell Pratt ... Mr. Garston, publisher Tully Marshall ... Managing editor Inez Palange ... Mrs. Camonte Edwin Maxwell ... Chief of detectivesRemake de 1983: ScarfaceDiretor: Brian de PalmaElenco:Al Pacino ... Tony MontanaSteven Bauer ... Manny RayMichelle Pfeiffer ... Elvira HancockMary Elizabeth Mastrantonio ... GinaRobert Loggia ... Frank LopezMiriam Colon ... Mama MontanaF. Murray Abraham ... Omar SuárezPaul Shenar ... Alejandro SosaHarris Yulin ... Mel Bernstein
 

domingo, julho 25, 2010


Sobre o curta metragem Sem Título

Um delicado manifesto em curta-metragem, que defende a vivência da liberdade e mostra a desobediência como virtude e potência.


“Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também,  até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.”
Machado de Assis, em Brás Cubas
Apresentando a menina Giovana
Não ter um nome logo associado ao que se vai ver, já é ter um título numa outra constituição condutora. Fizemos um novo curta que foi sendo pensado e trabalhado como se fosse um espelho quebrado, e que fossemos juntar os pedaços dentro de um espaço subjetivo de associações livres. O filme foi sendo construído na sua desconstrução interna. Dentro e fora do imaginário poético onde o essencial é o de ainda estarmos pensando, num mundo tão idiotizado destituído de sonhos. Ora, como dar um significado na não-significação dos pedaços isolados? Não pedaços para um filme a ser feito, mas a partir de modificações de imagens já feitas por Cristina Pinheiro e Andre Scucato, dotadas do valor afetivo. Ou seja, a partir de imagens já filmadas da menina Giovana Labella numa nova trajetória de contradições e alianças interrogativas.
Era preciso dar significação profunda a dissimetria de ideias e recursos. O já filmado era simples e afetuoso. O que fosse ser filmado implicaria numa nova abordagem que ia sendo olhado nessa dissociação de razões objetivas que fizesse pensar o espectro do stalinismo no Continente desigual. O filme teria que ser gestado na eterna imprevisibilidade da falta de dinheiro. Filmar com dinheiro é fácil. Já sem dinheiro algum é complicado. Mas nada foi omitido. Tanto o bom como o ruim. E se tudo é cinema, era preciso deixar fluir todas as contradições.
Fluir as ideias, o olhar, as imagens e as diferenças. E, por fim, a vitalidade do trabalho repousa nas dúvidas do “ser ou não ser” do velho Hamlet. Ser para sermos melhores. Ou não ser para nada ser. Nosso fio condutor foi uma vez mais o afeto. A primeira vista não nos parece um filme comum. E uma vez mais é construído entre múltiplas contradições em que a natureza sede seu lugar ao humano lado da criação. Portanto entre afetividades, três novos problemas se colocam: como lidar com as palavras, as imagens e a experimentação poética dialogando com a música e a história. E uma vez mais não caímos na comum gratuidade do cinema de mercado. Mantemo-nos fixados em rupturas, encontros e desencontros.
E numa desconexão com o fácil fomos pela contramão num favorecimento recíproco de afetos. Tivemos da produtora do Cinema de Poesia todo tipo de liberdade. Tanto para experimentar a tristeza ideológica de certas colagens, como de certas músicas eruditas, como a potencialização do olhar. Ou seja, fizemos um Curta-Manifesto, colocando o prazer no lugar das certezas. E então, tudo era possível: do desinteresse pela ordem tricotada pelos “podres poderes” da República à minha admiração por realizadores como Andrea Tonacci, Sergio Santeiro, Omar L. de Barros Filho (Matico), José Carlos Asbeg, Joana Collier, Isabel Lacerda, Marcelo Ikeda, Joel Yamaji, Fabio Carvalho, Ricardo Miranda, Joana Oliveira, Sindoval Aguiar... e não por acaso todos identificados com grandes desafios relacionados à história e à linguagem. Pode-se até não gostar dos nossos trabalhos, mas nenhum deles é insensível à ousadia. Até mesmo de errar.
$em Título deve ser entendido como uma vivência da liberdade, pura e simplesmente. Daí essa nossa postura de princípio lógico algum. Só o que conta é o nosso compromisso além dos limites impostos pela ordem dominante. Mas sem bravuras, bravatas ou sacrifícios – e sim com afetos. Chegamos aí num do doce Manifesto à desobediência. Desobediência num processo de aversão ao idiotismo do cinema de mercado. Aí coloca-se uma questão fundamental: por que os “filmes” precisam ser televisivos ou idiotas? Televisivos e idiotas que incorporam o capital, nunca o humano lado da criação. Mas é só um capital puramente de efeito, pois o mercado não é nosso e os “filmes” não se pagam na bilheteria. Então é uma farsa. E milhões e milhões vão sempre para os velhos e novos idiotas. Mas para fixarem o quê?  A violência, o espetáculo, a servidão e a impotência. Mas questionar o mercado ocupado pelo lixo de fora e de dentro, nem pensar!
Nosso curta $em Título passa por um outro registro, mais adequado a um uso criativo da desobediência como virtude e potência. Não queríamos contar uma historinha com princípio, meio e fim para nada dizer de substancial – nos esforçamos todos por um entrelaçamento associativo de questões básicas a serem pensadas. Em nosso sangue circulam Brecht, Artaud, Glauber... e temos orgulho disso. Razão pela qual não nos deixamos corromper pela imoralidade da obediência canina. $em Título é cinema! Cinema que se impõe como determinação da liberdade como questão fundamental.
Claro que não gostar é um direito inquestionável, e de modo algum usaremos o baixo recurso das “patrulhas”. Como sabiamente disse Fernando Pessoa em sua versão do “Fausto”: “A essência de mistério, o seu horror está não só em nada compreender, mas em não saber porque nada se compreende.” Cai como uma luva nesse desprezo contra o diferente, o saber, a linguagem e o humano. Nunca conseguiram perceber que o nosso compromisso sempre foi com o país, mas também com a linguagem e o saber. Nunca com o poder. Lá onde eles sempre estiveram para que nada fosse modificado. Adaptaram-se com facilidade a todo tipo de fascismo de ontem e de hoje. Eles, que sempre se alimentaram da prepotência, da mediocridade e da pequenez humana. Não à toa estão morrendo entre fracassos, tropeços, abusos e fascismos. A podridão irrompeu em sua história e ficou.
Não poderia ter sido diferente?
Fonte: O Autor e  Via Política

[Luiz Rosemberg Filho é diretor de cinema, escritor e artista plástico na cidade do Rio de Janeiro. Foi roteirista de Adyós General e Viva a Morte.

Dirigiu Assuntina das Amérikas, Crônicas de um Industrial e O Santo e a Vedete – até hoje inédito nos cinemas brasileiros. Um dos cineastas que melhor simboliza a criatividade que resiste na cinematografia nacional, atualmente dirige curtas-metragens em formato digital “para não enlouquecer”]

terça-feira, junho 22, 2010

O ÚLTIMO TANGO EM PARIS



Um Ritual da Tragédia


Uma estranha e “charmosa” escatologia tem início e passa a predominar nas cenas de O último Tango em Paris, o belíssimo filme de Bertolucci em que Paul (Marlon Brando), um americano deprimido e blasé conhece Jeanne (Maria Schneider), uma curiosa e sexy francesinha, ao se depararem um como o outro, inexplicavelmente, no mesmo velho e sombrio apartamento incrustado na Cidade Luz.

Com o encontro fortuito tem início uma verdadeira “folie à deux”. Em meio a objetos desarrumados e muita poeira, naquele vetusto apartamento parisiense a estranha relação apaixonada passa a existir e conviver com ratos e uma morbidez que perpassa a todo instante o ambiente.

O encontro fortuito se tornaria trágico. A paixão não se explica em amor puro e o bronco americano se torna um bruto amante, guardando os resíduos de memória em que a infelicidade predomina. O suicídio de sua mulher é a tônica para todo o desequilíbrio que se segue. A nova amante, uma aparente desavisada, uma atriz de segunda, inclusive na vida, não percebe a que armadilhas está se entregando. Curiosa, dotada mesmo de uma curiosidade mortal, não percebe, a priori, o longo e lento desespero do companheiro inusitado.

Iniciam-se os rituais de sexo eventual entre dois meros desconhecidos, que, a princípio, não se levavam a maior compromisso. Pergunta-se, de logo, se poderia haver ali espaço para o amor verdadeiro. Ou só existiria uma perigosa paixão, cuja marca era uma potencial violência e evidente sadomasoquismo.

Um dos grandes desempenhos do inesquecível Brando e, possivelmente, a maior aparição da instável Maria Schneider, o magnífico filme tem a cidade de Paris como o fundo luxuoso dessa estória inquietante. Um palco perfeito para uma estória trágica e que sinaliza – e eleva à décima potência – a eterna incomunicabilidade entre o homem e a mulher.

No cenário parisiense ainda há lugar (será?) para Tom (Jean-Pierre Léaud), um noivo que  está em vias de montar um filme picareta para a TV e que se aproveita de sua jovem namorada (e amante do americano) para fazer o papel de uma doce (e falsa) enamorada. Não é demais lembrar que isso configuraria o fatal número ímpar a ocasionar a tragédia já anunciada.

 O suicídio da mulher do americano permeia toda a estória, envolvendo-a em cinzas e no cinza das tardes parisienses de inverno. A traição ao seu truculento marido já não bastava e se fazia necessário até mesmo copiá-lo num outro, Claude (Massimo Girotti ),  que vestia roupas assemelhadas ao marido traído e compradas pela defunta. Nesse e em outros aspectos, Bertolucci fez um filme que caiu como luva para Brando e seu poder dramático e sua encarnação pessoal da tragédia. Nenhum outro ator, com uma história de vida diferente e outros traços psicológicos, teria um desempenho tão cruelmente realista. Em alguns momentos parece até uma biografia de Brando. Basta lembrar  que, assim como o personagem que encarnava, Marlon foi boxeador, ator e sofreu o suicídio próximo na família; questionava a mãe, o pai, a humanidade.

As imagens das pontes sobre o Sena realçam o valor de uma bela fotografia. Paris passa, então, a ser a continuidade do triste apartamento. E o desprezo da dupla de personagens centrais aos outros, aos terceiros causa a impressão de que é Paris que está dentro do apartamento e não o contrário.

O extravagante personagem de Maria Schneider cresce em cena por sua irresponsabilidade cúmplice. Sua aparente ingenuidade revela uma face perversa que anima a loucura que predomina. Os dois juntos – sem que nada conheçam um do outro – num apartamento que é a verdadeira metáfora da fuga e da ocultação, alimentam uma relação instável em que predomina um pacto de ignorância mútua. Não se querem conhecer, porém são cúmplices.  “–Não tenho nome”. “–Você não tem nome e eu também não”. Pessoas sem passado, ao menos na estranha relação encravada em suas vidas.

A perplexidade diante do inexorável e do inexplicável da morte somente comprova que não adianta buscar explicações. Muito menos se explicaria a morte voluntária, o suicídio. O desespero é que reina entre os mistérios da vida e da morte. Mas, até mesmo porque reinam as dúvidas e a descrença, o enterro religioso não será admitido para a mulher de Paul. Ele, num rompante de fúria contra a mãe da morta, sua sogra, afirma que ali ninguém crê. Rose, a suicida, não queria nada com a religião. Uma religião que, em meio à hipocrisia e dor provocara, antes, a destruição da família da suicida. Em uma cena  forte, Paul coloca em evidência os peitos protuberantes de Jeanne, comparando-os a úberes de vacas e afirmando o tom animalesco de sua relação atual, frisando o que de bizarro já compunha a vida anterior de sua esposa morta. Possivelmente a violência sexual que sofrera do pai, um patife religioso que sequer se fará presente ao velório daquela que ajudou “psicologicamente” a matar.

A descrença e a incredulidade, num contexto como o que descrito, tomará seu lugar óbvio. Cada toque provoca frisson, cada palavra traz comoção “à flor da pele.” A navalha passa a ter vários usos e o absurdo é tão intenso que aquele instrumento que serviu para cortar os pulsos da morta, é usado, pouco depois, para a feitura da barba de Paul. Rose está, definitivamente, morta! Porém...as lembranças continuam a torturar.

A manteiga como o involuntário lubrificante anal para Jeanne representa o sadismo que visa punir o “pecado” do outro; e, depois, o pedido para que Jeanne introduza seus dois dedos no ânus de Paul é a senha para expiar os seus próprios pecados, numa auto-flagelação quase que...religiosa. Punir e punir-se pelo passado, pelos segredos. O masoquismo anal de Paul é a forma de extirpar a dor desses pecados. Mas, que pecado,  se não se crê? A revolta é contra a morta ou contra a morte? Ou contra a vida é que se dirige toda a violência? 

O naufrágio lento. Os amantes, em algum momento propõem: “–Chega de amontoar coisas” Frase ambígua que denota a memória doída e o desejo de esquecimento. Tudo soa falso agora. E nisso está a noiva, a falsa noiva de um filme para TV.

Paul não conhecia também sua esposa trágica: “–Mesmo que um marido viva 200 anos ele nunca saberá da verdadeira natureza de sua esposa”. A prostituta invasiva velha e feia que tenta ingressar, com seu cliente perplexo, no recinto onde jaz o corpo pálido da mulher morta de Paul é que vai revelar, de alguma maneira, por algum motivo que se esconde apenas na mente de Paul, um velho – e até então esquecido – mistério preso no passado. Tal fato,  juntamente com o lúgubre “diálogo” de Paul com a mulher em seu caixão, tem o condão de desencadear toda uma abertura para a verdade, para a verbalização da verdade.

Paul decide contar tudo a sua paixão parisiense. “Conhecerás a verdade e a verdade vos libertará”. E aí começa o triste e catastrófico ritual do último tango. Não era para dizer, não era para dizer nada. É isso que parece. Toda a revelação sobre sua vida destrói, arrasa o mistério  e faz com que se confirme a decisão de Jeanne de se casar com outro, o diretor do filme falso e feliz em que o amor predomina. E o  amor impossível e real termina em meio a uma dança perigosa e trôpega ensaiada por dois delirantes bêbados. “Bonne chance dans le dernier tango!”, propõe a presidente do júri do concurso bizarro de dança.

Qual a escolha para fugir? Para fugir novamente? Casar. Eis mais uma trágica decisão que traz força à derradeira, pondo terra sobre a relação tresloucada: Jeanne, decidida a não mais aceitar o amor louco que se instalara de forma sorrateira, atira, à queima-roupa no amante de meia-idade. Paul perde, lentamente, todas as faculdades, toda a vitalidade contraditoriamente mórbida e tem o seu final diante de uma Paris que o ignora, como a um indigente.

Toda a vivência da paixão havia se passado com um mero desconhecido!? Não há realidade exterior conhecida. O som do tiro bloqueia a pronúncia do nome. Paris ao fundo, vela tristemente o novo morto. A repetição perplexa e balbuciante da fala que justificará o crime aparenta um nervoso ensaio de atriz, falseando (!?) toda a realidade duramente vivida: “–Não sei o nome dele. Eu não o conheço. Não sei o nome dele”.


 Ficha Técnica:

Título Original: Ultimo Tango a Parigi
Tempo de Duração: 123 minutos
Ano de Lançamento (França): 1972
Estúdio: Les Productions Artistes Associés / Produzioni Europee Associati
Distribuição: United Artists
Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Bernardo Bertolucci e Franco Arcalli, baseado em estória de Bernardo Bertolucci
Produção: Alberto Grimaldi
Música: Gato Barbieri
Fotografia: Vittorio Storaro
Desenho de Produção: Ferdinando Scarfiotti
Figurino: Gitt Magrini
Edição: Franco Arcalli e Roberto Perpignani


 Elenco:

Marlon Brando (Paul)
Maria Schneider (Jeanne)
Maria Michi (Mãe de Rosa)
Giovanna Galletti (Prostituta)
Gitt Magrini (Mãe de Jeanne)
Catherine Allégret (Catherine)
Luce Marquand (Olympia)
Marie-Hélène Breillat (Monique)
Catherine Breillat (Mouchette)
Jean-Pierre Léaud (Tom)
Massimo Girotti (Marcel)
Veronica Lazar (Rosa)
Rachel Kesterber (Christine)




Por Lívio Oliveira*

[*Lívio Oliveira é Procurador Federal, escritor e poeta. É ex-Presidente da União Brasileira de Escritores do Rio Grande do Norte (UBE/RN). Também é membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN e do Comitê Diretor da Aliança Francesa de Natal/RN. Publicou os livros “O Colecionador de Horas” (2002), “Telha Crua” (2004), “Bibliotecas Vivas do Rio Grande do Norte” (2004), “Pena Mínima” (2007), “Dança em Seda Nua” (2009), além do CD “CINECLUBE” (2009). Ganhou os prêmios literários Othoniel Menezes (Funcarte- Natal/RN - 2004) e Luís Carlos Guimarães (FJA/RN-2004). Contribui e contribuiu, com seus textos, para diversos jornais e revistas.
Blog:- www.oteoremadafeira.blogspot.com]

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sexta-feira, maio 28, 2010

Easy Rider – SEM DESTINO


Easy Rider – SEM DESTINO
  
Qual busca? Qual viagem?


                A busca. O encontro? Caminhos tortuosos (drogas, sexo, rock’n roll, acidentes, incidentes, crise, crime, morte) e os desvios no caminho dos aventureiros, doces aventureiros que, sob sol e lua, seguiam um roteiro utópico de vida, uma estrada longínqua para fora de si próprios.

A busca frenética se dava no exterior de si mesmos, no que está fora do homem, lembrando a todo instante e impondo à realidade a frase atribuída a Lennon:

-Eu já estive em vários lugares e só me encontrei em mim mesmo."

As últimas consequências eram o que queriam e o que ditava o comportamento errante dos dois motoqueiros que cruzavam as estradas dos EUA. A morte, o fim bizarro e súbito, após toda uma trajetória de aventuras, de delícias e prazeres e perigos (voluntários ou involuntários) foi o que conseguiram, foi o que sobrou dos sonhos em pedaços, assim como os restos de suas amadas motocicletas destruídas pela estupidez dos homens.

 Peter Fonda e Dennis Hopper conseguiram magistralmente nesse filme traduzir o sentido de uma época, de um sonho, mas um sonho confuso, ainda inidentificável – estudado e esmiuçado por todos – do movimento e da cultura hippies e depois deles. Talvez, também projetando os efeitos residuais no quadro atual da história frente àqueles anos de frenesi e de rebeldia, conseguir-se-á chegar às verdadeiras nuances!?

“Flower power” e “Peace and love”? A utopia, de alguma forma, chegou a vingar?!

 O Rock’n Roll e seus hinos como a linguagem da época e as viagens psicodélicas e as reais nas estradas poeirentas por onde rolavam livremente as motos, as belas e possantes Harley-Davidson, clássicas como uma peça de Brahms, míticas como as pirâmides do Egito – hoje transformadas num ícone capitalista – carregavam  disputados e ilegais dólares em seus tanques e mostravam facetas ambíguas dos dois personagens, sempre prestes e dispostos à subversão. Além disso, Jack Nicholson, no papel de um jovem advogado alcoólatra, envolvido contumazmente em enrascadas, representava a lei ambígua e frágil e completaria o trio nômade, como um intruso e trágico passageiro desse caminho sem fim, sem qualquer destino. Ficaria, como um indigente morto, no meio do caminho. Mas quem não ficou? Quem não fica por completar o caminho?





Nesse belo filme, Laszlo Kovacs – diretor de fotografia – consegue atingir o clímax das imagens, da representação complexa, por vezes árida, por vezes frutífera, da paisagem geográfica e humana dos norte-americanos, onde vagaram os dois motoqueiros em seus coloridos “alazões” metálicos e policromáticos, tão perdidos como o sonho de sua geração.

Produzido por Peter Fonda e dirigido por Dennis Hopper, o filme mostra uma eterna busca, simbolizada pela viagem em procura do Mardi Gras, festa folclórica assemelhada ao carnaval, em New Orleans. Quase como uma peregrinação religiosa a uma espécie de Meca sagrada, vão alimentando crenças e desejos para o cumprimento (in)disciplinado de uma meta (qual?). O desejo, por exemplo, de um deles, de ter uma mulher ideal, o sonho de “viajar para mais longe” (numa das falas de Hopper)?, intenção posta, canalizada para as drogas, nas ilusões que se perderam, pulverizadas pela ignorância e pelo preconceito disseminados na cultura e sociedade americanas.

O sentimento e ação underground, como um estilo alternativo de vida dão a tônica e o ritmo. A moto, o aço motorizado, a máquina, são o moto-contínuo que se viabiliza na permanente troca e substituição de pneus, trabalho que se reportaria à engenhosa e vetusta troca das ferraduras dos cavalos (outras épocas!?). Nessa cena em paralelo traduz-se um sentido histórico da própria busca e evolução humanas.

Ter fé em sua época? Que fé eles nutriam? A não–fé, a não-crença, o desacreditar, o descrer? Eles saem de Los Angeles e vão para New Orleans. Pé na estrada! Algo buscam: outras paragens, outras paisagens. Montanhas, desertos, lagos; e outros lugares fazem o pano de fundo para a dramática e trágica realidade daqueles que não sabem o que realmente intentam.

Os caronas. Os caronas, com suas sempre angustiantes presenças, provocam os primeiros receios: “Tudo o que sonhamos está naquele tanque”. Essa frase denuncia, definitivamente, o sonho ambíguo, incompleto, etéreo e até ingênuo dos dois companheiros, quando se deparam com um terceiro a manejar a bomba de gasolina para encher o tanque de uma das “máquinas”.

 Psicodelismo como solução também cinematográfica, fotografia mágica da vida em meio à poeira, ao vento, à natureza  profunda. Hippies e sexo livre, haxixe, maconha, o café, o arroz do almoço: o que eles faziam era plantar para colher. E viriam a colher! A colheita sempre vem. Seja lá quando e o que for!

A memória dos índios, os verdadeiros donos da terra, é demonstrada em cena em que os ancestrais são cultuados e respeitados. Um povo quebrando tradições em buscas dos laços embrionários com o humano e tradições tão remotas quanto aqueles. Mais ambigüidades, mais indefinições, mais reflexões profundas. Mais viagens!

 O compartilhar do alimento. Longos cabelos e barbas. Lagos, montanhas, desertos. Um advogado patético e bêbado que celebra a D. H. Lawrence “o primeiro do dia” e serve um trago de whisky. Óvnis. Mundos sem guerras, sem sistema monetário, sem líderes. Os “venusianos”  é que teriam a autoridade real de dar o exemplo para nossa existência.

A bandeira americana, presente em todos os cantos, em todos os rincões, é um escudo usado pelo conservadorismo hipócrita já exibido historicamente. Uma vasão? E quando e como reagem à invasão e aos bárbaros que aportam nas areias de suas praias  ensolaradas ou conquistando suas belas e jovens mulheres nas províncias mais inóspitas? E se forem eles “venusianos”?

Os contrastes expostos, como uma forte fratura, são de uma sociedade ambígua que se situa em parâmetros de preconceito e racismo. De que têm medo os americanos e todos os povos, enfim? Da liberdade? Da liberdade do outro?

–“É difícil ser livre quando se é comprado e vendido no mercado”.

 A violência capitalista se dá exatamente e mais contundentemente contra a liberdade, a liberdade de escolha, a liberdade de ser diferente, a liberdade de viver conforme seu próprio estilo e desejo.

O filme toca, pontualmente, também em alguns aspectos religiosos e levanta, ao menos para observadores críticos e não tão católicos a pergunta fundamental: qual a diferença entre uma santa e uma puta? “Se Deus não existisse seria necessário inventá-lo” (eis a frase posta num prostíbulo em que os personagens se deliciam no trajeto). O vinho é o sangue de Cristo. E onde fica a santa? E onde fica a puta? Billy e Capitão América encontram tal dilema mítico decorrente da afirmativa de uma amante por profissão:

–“My name is Mary!”, diz a prostituta.

“Meu nome é Maria!”.

É! O nome é Maria e provoca o desejo dos “guerreiros” errantes de voltarem ao útero materno, único lugar protegido. Maria é a única que nos protege!

O que predomina nos personagens é a ingenuidade da busca e do encontro de um idílio. Ou, então, o conhecimento mais cabal de que suas ações não têm mesmo um sentido mais nítido.

As paisagens e as horas variam e levam ao momento em que os negros, em New Orleans, fazem e festejam a música. A festa e o ácido compartilhado produzem efeitos lisérgicos nos personagens que lhe são reveladores (?), mesmo que por poucos instantes:

– “Creio em Deus Pai...”.

A indagação salta à mente: o cemitério onde se encontram e experimentam o ácido é onde habita Deus? Deus está ali? Ali tem morada eterna?

– “Nasceu da Virgem Maria...”

E a dicotomia se impõe, novamente, desafiando uma resposta: Onde a puta? Onde a santa? E o filho...?

–“Estou fora da minha cabeça”.

 Estradas, pontes, fogueiras, matagais, pântanos, dias, noites, noites e dias. E as multinacionais se multiplicam na estrada: Esso, Enco. Eita! Mais dinheiro!

– “Nós estragamos tudo, Billy”.

Estradas, árvores, lagos.

–“Nós estragamos tudo, Billy”.

Premonições. A morte bizarra e inexplicável, pelas mãos de um estúpido. Onde a glória que buscavam? Rios. Risos nervosos.

– “Por que não corta o cabelo?”

Intolerância e medo ao diferente e à liberdade. Os EUA podem encarnar uma metáfora da liberdade? Conquistar dinheiro é se tornar livre?

Uma coisa é pensar na liberdade, outra é exercitá-la.

– “Estou fora da minha cabeça”.

 
Ficha Técnica:
Título original: Easy Rider
País/Ano: EUA/1969
Diretor: Denis Hopper
Duração: 91 min
Elenco: Peter Fonda, Denis Hopper, Jack Nicholson


 Por Lívio Oliveira

[*Lívio Oliveira é Procurador Federal, escritor e poeta. É ex-Presidente da União Brasileira de Escritores do Rio Grande do Norte (UBE/RN). Também é membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN e do Comitê Diretor da Aliança Francesa de Natal/RN. Publicou os livros “O Colecionador de Horas” (2002), “Telha Crua” (2004), “Bibliotecas Vivas do Rio Grande do Norte” (2004), “Pena Mínima” (2007), “Dança em Seda Nua” (2009), além do CD “CINECLUBE” (2009). Ganhou os prêmios literários Othoniel Menezes (Funcarte- Natal/RN - 2004) e Luís Carlos Guimarães (FJA/RN-2004). Contribui e contribuiu, com seus textos, para diversos jornais e revistas. 
Blog:- www.oteoremadafeira.blogspot.com]

sexta-feira, maio 21, 2010

 Lívio Oliveira*
“A MARGEM”
(UMA METÁFORA DA INCOMUNICABILIDADE)



Ozualdo Candeias, cineasta da Boca do Lixo, falecido  em fevereiro de 2007, realiza em seu filme “A Margem”, que inaugurou, para alguns, o movimento do Cinema Marginal em São Paulo e no Brasil, a fábula da solidão em meio à grandiosidade da metrópole. Numa obra que explora os efeitos mais profundos do “estar-só” diante do mundo surgem metáforas que buscam as explicações possíveis para as tormentas da alma perdida entre as impossibilidades do ser ilhado.

[Ozualdo Candeias]

         O filme bem poderia ser intitulado, pelo que já exposto, “A Ilha”, inclusive porque todos os elementos – obviamente também o rio e a ponte, originariamente atravessados pelos personagens principais, espécie de quarteto ensandecido e errante – terminam por nos trazer a idéia de que a metrópole (no caso, a cidade de São Paulo) é, em si própria, uma ilha. E projeta esse pensamento ao ponto de convencer que o homem, ele mesmo, é insulado no seu interior povoado de dúvidas e medos e nas suas respostas irrealizadas diante de uma busca eterna da felicidade e do amor.
         Ninguém – nenhum dos personagens – consegue produzir um diálogo consistente, racional e conclusivo no filme. Todos os diálogos são incompletos, imperfeitos, desviados do centro íntimo do assunto original, levando, quase sempre, pela confusão e balbúrdia criadas em torno das falas e dos comportamentos disformes, egoísticos e sem regras, à discórdia e à tragédia. A comunicação é, no fim de todas as contas, uma impossibilidade. Um louco, um aparente burguês, uma ingênua e sonhadora jovem, uma puta: Há um jogo evidente entre quatro personagens em que o roteiro se fulcra – que não se entendem e não se estendem um ao outro – através do qual se criam muralhas imaginárias, permitindo-se um aprofundamento do abismo invisível, cada vez mais amplo, que separa um indivíduo do seu “semelhante”.
         A impressão que se colhe é a de que essa incomunicabilidade, num contexto e através de uma visão filosófica que possui traços nitidamente existencialistas e, a um certo ponto, niilistas, é a própria e acabada tragédia humana. Ali, onde não se consegue saber o verdadeiro valor de uma flor – colhida em meio ao lixo – melhor destruí-la ou tomá-la para si. A vida, nessa realidade cinza é desconstruída desde o seu início. Em tudo se inaugura uma descrença prévia e é aí que se inicia a batalha íntima, o conflito dos espíritos e, numa análise simbólica radical, a guerra entre povos, com a destruição mesma da idéia de civilização. Surgem perguntas: De que adianta tanta tecnologia, tantas inovações, tantas riquezas, patenteadas pela enormidade da cidade central, metrópole crescida? Onde está mesmo a civilização que se quer afirmar como presente? Ora, tudo se esvai no ar, diante da solidão profunda dos homens e mulheres que vivem sob tal realidade opressiva! O crescimento e desenvolvimento urbano, que deveriam incluir a todos, terminam por se transformar no mais cabal sistema de exclusão.
         A religião é, no filme, uma outra impossibilidade. É mais uma tentativa, em vão, da salvação do homem. Uma igreja encrustrada em meio ao mato e aos detritos – com um padre, ou um santo mesmo (seja lá como se queira representar o personagem surgido inusitadamente), que dorme e acorda num completo alheamento e que se comporta, num momento posterior, mais como um agente burocrático da fé do que um condutor das almas ao encontro de um Deus que se idealiza e se busca – demonstra a todos que ali se encontra um abismo que cresce, mais uma impossibilidade, ampliando e corroborando a própria idéia de morte, que, por si só, já resume toda a desesperança humana.
         A cena de um casamento impossível, em que uma mulher negra rouba um vestido branquíssimo e se veste para um casamento ilusório em meio a toda a sujeira ao seu redor, é a marca exata dessa quebra ou inocorrência de liames, de vínculos de humanidade entre os personagens tão díspares, tão distintos, tão exilados de si e entre si.
         Apesar de tudo, teimam os personagens em permanecer juntos, não se sabendo em busca de qual catástrofe final (ou não?!). Atravessam a ponte unidos e, ainda assim, ingressam no mesmo barco, que segue para o meio do rio (aqui o filme parece fazer uma alusão ao importante “Limite”, de Mário Peixoto) sem um destinatário exato, somente a dúvida, a incerteza, a exercitada desilusão.
Talvez o que Candeias tenha explicitado em “A Margem” seja a própria demonstração do mais cabal fracasso do homem sobre a terra, o que inclui todas as raças, credos, classes sociais (o filme, a meu ver, transcende esse aspecto, o do conflito de classes, indo além, ao conflito íntimo humano mesmo,  apesar da análise de muitos que o consideram uma película eminentemente de cunho social-político). Esse fracasso absurdo contextualizado em “A Margem” é, definitivamente, o de não ter chegado a humanidade a conhecer a si mesma.



Ficha Técnica do filme:

Brasil,1967
Produção: Ozualdo Candeias e Michael Salddi
Direção, argumento e roteiro: Ozualdo Candeias
Fotografia: Berlamindo Mancinni
Sonografia: Júlio Perez Caballar
Cenografia: José P. Silva
Montagem: Máximo Barro
Música: Luiz Chaves e Zimbo Trio
p&b, 35mm, 96minutos

Com Mário Benvenutti, Valéria Vidal, Bentinho, Lucy Rangel, Tele Kare, Paula Ramos, Brigitte, Ana F. Mendonça, Paula Gaeta, Nelson Gaspari, Dantas Filho, Luciano Pessoa, Luiz Alberto, Virgílio Sampaio, José Licneraki, Zimbo Trio.Prêmios: melhor diretor e música para Luiz Chaves (Prêmio Governador do Estado de São Paulo, 1967), melhor diretor, atriz para Valéria Vidal e música para Luiz Chaves (prêmio Instituto Nacional de Cinema, 1967) e menção honrosa para Ozualdo Candeias e Valéria Vidal (III Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, 1967).

*Editor [ AUTOR DO ARTIGO]

[*Lívio Oliveira é Procurador Federal, escritor e poeta. É ex-Presidente da União Brasileira de Escritores do Rio Grande do Norte (UBE/RN). Também é membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN e do Comitê Diretor da Aliança Francesa de Natal/RN. Publicou os livros “O Colecionador de Horas” (2002), “Telha Crua” (2004), “Bibliotecas Vivas do Rio Grande do Norte” (2004), “Pena Mínima” (2007), “Dança em Seda Nua” (2009), além do CD “CINECLUBE” (2009). Ganhou os prêmios literários Othoniel Menezes (Funcarte- Natal/RN - 2004) e Luís Carlos Guimarães (FJA/RN-2004). Contribui e contribuiu, com seus textos, para diversos jornais e revistas. 
Blog:- www.oteoremadafeira.blogspot.com]


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