quarta-feira, outubro 06, 2010

Repulsion - "Repulsa ao Sexo"
(Um bunker contra o desejo)
 
 
Por Lívio Oliveira

A belíssima Catherine Deneuve encarna nesse filme – o primeiro da intrigante trilogia do apartamento, feita pelo diretor Roman Polanski – uma frígida jovem atordoada com a presença do sexo oposto e que assume, gradativamente, uma condição esquizoide que a destroi como indivíduo, além de afetar tragicamente todos os que dela se aproximam.


Ainda muito jovem, a colossal atriz Catherine Deneuve vive o papel da manicure Carol Ledoux, certamente uma das personagens mais estranhas e mais ricas da história do cinema. Carol é uma estonteante loura nascida na Bélgica, tendo traços psíquicos complexos e que vive em Londres, na companhia de sua irmã mais velha, Helen, com quem estabelece laços de dependência e afeto quase que filiais.

Sintomas de transtornos psíquicos e sexualidade reprimida começam a transparecer, lenta e sutilmente, da personalidade ensimesmada de Carol. No trabalho, na rua, no próprio apartamento...esquecimentos, vazios psíquicos, olhares perdidos, alheamento e uma bizarra aversão a presença do sexo; na verdade, do sexo oposto, pelo qual demonstra ojeriza, nojo, repulsa. Tudo isso compõe o perfil da inquietante personagem que surpreende, de forma marcante e única, a cada nova cena. Nós, assistentes, tornamo-nos como que espécies de voyeurs, frente ao oculto que se desvela diante de nossos olhares perplexos.

O namorado apaixonado tenta, a todo custo, seduzi-la, conquistá-la, estabelecer o mínimo de contato corporal, o que seria absoluta e evidentemente comum na espécie de relação entre os dois sexos; porém, não para Carol. E essa estória arrastada entre os dois terminaria mal, muito mal. A insistência do desejoso – e quase desesperado – pretendente, leva-o a um fim absolutamente trágico, como trágico se tornaria o resto da trama.

Tudo começa a tomar uma radical transformação, principalmente quando se concretiza a prevista viagem – de duas semanas – da irmã, com o namorado (casado) meio cafajeste, para a Itália. O mundo íntimo de Carol inaugura um paulatino desmoronamento. Não há mais chão e começam a rachar os liames entre Carol e a realidade (e as rachaduras e buracos se dispõem em imagens por vários momentos do filme, com uma forte simbologia – uma delas simulando mesmo o formato de uma vagina).

As alucinações, antes as fantasias, tudo leva a um clima de terror psicológico, um suspense que vai afunilando as possibilidades de saída, de salvação, até que Carol se interna no apartamento, na obscuridade, na mais completa solidão, isolando-se de qualquer contato externo, este que se faz sentir unicamente pelas badaladas de um sino nos arredores.

Tudo caminha de forma assustadoramente trágica.

O namorado a procura e mesmo invade o apartamento, arrombando a porta. A frágil virgem, num momento de desespero extremo o golpeia muitas vezes com um candelabro e põe o corpo morto do ex-parceiro numa banheira cheia d’água. A alienação tremendamente nociva se completa com a presença – no apartamento – de um coelho morto, infestado de moscas (teria sido um prato a preparar, antes esquecido pela irmã na geladeira).

Vai-se agravando a realidade da moça, uma espécie de anjo e demônio de cabelos longos e dourados e olhos brilhantes: mais um crime, desta feita do proprietário do apartamento, que viera cobrar o valor correspondente ao aluguel. Morto cruelmente a navalhadas e, como a vítima anterior, removido da sala onde acontecera o desfecho terrível. As alucinações aumentam e Carol passa a ver e a sentir braços e mãos saindo das paredes, agarrando-lhe os seios, tocando em seu corpo imaculado. Em outras cenas, a proposição de estupro fica subentendida.

O desempenho de Deneuve é impressionante e assustador: os tiques nervosos, o olhar vago, a alienação mais plena diante da realidade do mundo. Sua personagem, antes da viagem da irmã, era vaidosa, vivendo a pentear os belos cabelos louros. No apartamento, deixa-se largar ao acaso e ao destino, um destino crudelíssimo, em meio a sangue e outros dejetos que se espalham pelo apartamento fechado, hermético, estranho e escuro.
Ao chegar de viagem, sua irmã se depara com o pior dos mundos: mortos dentro do apartamento, que tem a porta visivelmente entreaberta, arrombada. O grito que lhe escapa é de dor e de incompreensão. Apesar de vários avisos, inclusive de seu namorado cafajeste, não acreditava na gravidade do mal que acometia Carol. Esta, deixando seu braço pálido aparecer debaixo da cama, seu último refúgio (como o fazem as crianças), expõe a fratura mental que se estabeleceu à revelia de todos, exibe a fragilidade do funcionamento psíquico do ser humano. O ousado namorado (de suspeitíssimo caráter) da irmã a carrega para a sala, com um discreto sorriso cínico e vitorioso, como numa espécie de vingança sexual, decorrente do desejo que geralmente se atribui aos homens pelas suas cunhadas.

Carol está destruída psiquicamente, o apartamento está um caos em meio ao lixo. Ali travou-se uma guerra particular, com pelo menos três mortos: dois homens e o desejo de Carol. Aquele olhar perdido da criança loura na foto – um dos destaques finais do filme – em Bruxelas guardava o destino terrível da jovem Carol, enlouquecida, assassina, morta dentro de si própria, num apartamento que significava uma verdadeira casamata contra o desejo e a felicidade. Nesse filme, que lembra momentos também de Hitchcock (Psicose) e Buñuel (El), Polanski expõe as mais lancinantes dores (quando a dor imensa se instalava, no filme era o silêncio que se ouvia) que um ser humano pode sentir, a ponto de não mais perceber o entorno e a realidade do mundo, de perder a sensibilidade acerca de tudo e de todos e de se transformar num ser sombrio e monstruoso, negando a mais remota hipótese de transpor os limites de sua loucura e de trocá-la, definitiva e sabiamente pelo desejo e pela vida.



Ficha técnica:

Repulsa ao Sexo - Repulsion, Inglaterra, 1965, p&b, 105’

Direção: Roman Polanski; Roteiro: Roman Polanski e Gérard Brach; Produção: Gene Gutowski; Música: Chico Hamilton; Fotografia: Gilbert Taylor; Montagem: Alastais McIntyre; Elenco: Catherine Deneuve (Carol Ledoux); Ian Hendry (Michael); John Fraser (Colin); Yvonne Furneaux (Helen Ledoux); Patrick Wymark (senhorio); Renee Houston (Srta. Balch); Valerie Taylor (Madame Denise); James Villiers (John); Helen Fraser (Bridget); Hugh Futcher (Reggie); Monica Merlin (Sra. Rendlesham); Imogen Graham (manicure); Roman Polanski (músico).
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