terça-feira, junho 22, 2010

O ÚLTIMO TANGO EM PARIS



Um Ritual da Tragédia


Uma estranha e “charmosa” escatologia tem início e passa a predominar nas cenas de O último Tango em Paris, o belíssimo filme de Bertolucci em que Paul (Marlon Brando), um americano deprimido e blasé conhece Jeanne (Maria Schneider), uma curiosa e sexy francesinha, ao se depararem um como o outro, inexplicavelmente, no mesmo velho e sombrio apartamento incrustado na Cidade Luz.

Com o encontro fortuito tem início uma verdadeira “folie à deux”. Em meio a objetos desarrumados e muita poeira, naquele vetusto apartamento parisiense a estranha relação apaixonada passa a existir e conviver com ratos e uma morbidez que perpassa a todo instante o ambiente.

O encontro fortuito se tornaria trágico. A paixão não se explica em amor puro e o bronco americano se torna um bruto amante, guardando os resíduos de memória em que a infelicidade predomina. O suicídio de sua mulher é a tônica para todo o desequilíbrio que se segue. A nova amante, uma aparente desavisada, uma atriz de segunda, inclusive na vida, não percebe a que armadilhas está se entregando. Curiosa, dotada mesmo de uma curiosidade mortal, não percebe, a priori, o longo e lento desespero do companheiro inusitado.

Iniciam-se os rituais de sexo eventual entre dois meros desconhecidos, que, a princípio, não se levavam a maior compromisso. Pergunta-se, de logo, se poderia haver ali espaço para o amor verdadeiro. Ou só existiria uma perigosa paixão, cuja marca era uma potencial violência e evidente sadomasoquismo.

Um dos grandes desempenhos do inesquecível Brando e, possivelmente, a maior aparição da instável Maria Schneider, o magnífico filme tem a cidade de Paris como o fundo luxuoso dessa estória inquietante. Um palco perfeito para uma estória trágica e que sinaliza – e eleva à décima potência – a eterna incomunicabilidade entre o homem e a mulher.

No cenário parisiense ainda há lugar (será?) para Tom (Jean-Pierre Léaud), um noivo que  está em vias de montar um filme picareta para a TV e que se aproveita de sua jovem namorada (e amante do americano) para fazer o papel de uma doce (e falsa) enamorada. Não é demais lembrar que isso configuraria o fatal número ímpar a ocasionar a tragédia já anunciada.

 O suicídio da mulher do americano permeia toda a estória, envolvendo-a em cinzas e no cinza das tardes parisienses de inverno. A traição ao seu truculento marido já não bastava e se fazia necessário até mesmo copiá-lo num outro, Claude (Massimo Girotti ),  que vestia roupas assemelhadas ao marido traído e compradas pela defunta. Nesse e em outros aspectos, Bertolucci fez um filme que caiu como luva para Brando e seu poder dramático e sua encarnação pessoal da tragédia. Nenhum outro ator, com uma história de vida diferente e outros traços psicológicos, teria um desempenho tão cruelmente realista. Em alguns momentos parece até uma biografia de Brando. Basta lembrar  que, assim como o personagem que encarnava, Marlon foi boxeador, ator e sofreu o suicídio próximo na família; questionava a mãe, o pai, a humanidade.

As imagens das pontes sobre o Sena realçam o valor de uma bela fotografia. Paris passa, então, a ser a continuidade do triste apartamento. E o desprezo da dupla de personagens centrais aos outros, aos terceiros causa a impressão de que é Paris que está dentro do apartamento e não o contrário.

O extravagante personagem de Maria Schneider cresce em cena por sua irresponsabilidade cúmplice. Sua aparente ingenuidade revela uma face perversa que anima a loucura que predomina. Os dois juntos – sem que nada conheçam um do outro – num apartamento que é a verdadeira metáfora da fuga e da ocultação, alimentam uma relação instável em que predomina um pacto de ignorância mútua. Não se querem conhecer, porém são cúmplices.  “–Não tenho nome”. “–Você não tem nome e eu também não”. Pessoas sem passado, ao menos na estranha relação encravada em suas vidas.

A perplexidade diante do inexorável e do inexplicável da morte somente comprova que não adianta buscar explicações. Muito menos se explicaria a morte voluntária, o suicídio. O desespero é que reina entre os mistérios da vida e da morte. Mas, até mesmo porque reinam as dúvidas e a descrença, o enterro religioso não será admitido para a mulher de Paul. Ele, num rompante de fúria contra a mãe da morta, sua sogra, afirma que ali ninguém crê. Rose, a suicida, não queria nada com a religião. Uma religião que, em meio à hipocrisia e dor provocara, antes, a destruição da família da suicida. Em uma cena  forte, Paul coloca em evidência os peitos protuberantes de Jeanne, comparando-os a úberes de vacas e afirmando o tom animalesco de sua relação atual, frisando o que de bizarro já compunha a vida anterior de sua esposa morta. Possivelmente a violência sexual que sofrera do pai, um patife religioso que sequer se fará presente ao velório daquela que ajudou “psicologicamente” a matar.

A descrença e a incredulidade, num contexto como o que descrito, tomará seu lugar óbvio. Cada toque provoca frisson, cada palavra traz comoção “à flor da pele.” A navalha passa a ter vários usos e o absurdo é tão intenso que aquele instrumento que serviu para cortar os pulsos da morta, é usado, pouco depois, para a feitura da barba de Paul. Rose está, definitivamente, morta! Porém...as lembranças continuam a torturar.

A manteiga como o involuntário lubrificante anal para Jeanne representa o sadismo que visa punir o “pecado” do outro; e, depois, o pedido para que Jeanne introduza seus dois dedos no ânus de Paul é a senha para expiar os seus próprios pecados, numa auto-flagelação quase que...religiosa. Punir e punir-se pelo passado, pelos segredos. O masoquismo anal de Paul é a forma de extirpar a dor desses pecados. Mas, que pecado,  se não se crê? A revolta é contra a morta ou contra a morte? Ou contra a vida é que se dirige toda a violência? 

O naufrágio lento. Os amantes, em algum momento propõem: “–Chega de amontoar coisas” Frase ambígua que denota a memória doída e o desejo de esquecimento. Tudo soa falso agora. E nisso está a noiva, a falsa noiva de um filme para TV.

Paul não conhecia também sua esposa trágica: “–Mesmo que um marido viva 200 anos ele nunca saberá da verdadeira natureza de sua esposa”. A prostituta invasiva velha e feia que tenta ingressar, com seu cliente perplexo, no recinto onde jaz o corpo pálido da mulher morta de Paul é que vai revelar, de alguma maneira, por algum motivo que se esconde apenas na mente de Paul, um velho – e até então esquecido – mistério preso no passado. Tal fato,  juntamente com o lúgubre “diálogo” de Paul com a mulher em seu caixão, tem o condão de desencadear toda uma abertura para a verdade, para a verbalização da verdade.

Paul decide contar tudo a sua paixão parisiense. “Conhecerás a verdade e a verdade vos libertará”. E aí começa o triste e catastrófico ritual do último tango. Não era para dizer, não era para dizer nada. É isso que parece. Toda a revelação sobre sua vida destrói, arrasa o mistério  e faz com que se confirme a decisão de Jeanne de se casar com outro, o diretor do filme falso e feliz em que o amor predomina. E o  amor impossível e real termina em meio a uma dança perigosa e trôpega ensaiada por dois delirantes bêbados. “Bonne chance dans le dernier tango!”, propõe a presidente do júri do concurso bizarro de dança.

Qual a escolha para fugir? Para fugir novamente? Casar. Eis mais uma trágica decisão que traz força à derradeira, pondo terra sobre a relação tresloucada: Jeanne, decidida a não mais aceitar o amor louco que se instalara de forma sorrateira, atira, à queima-roupa no amante de meia-idade. Paul perde, lentamente, todas as faculdades, toda a vitalidade contraditoriamente mórbida e tem o seu final diante de uma Paris que o ignora, como a um indigente.

Toda a vivência da paixão havia se passado com um mero desconhecido!? Não há realidade exterior conhecida. O som do tiro bloqueia a pronúncia do nome. Paris ao fundo, vela tristemente o novo morto. A repetição perplexa e balbuciante da fala que justificará o crime aparenta um nervoso ensaio de atriz, falseando (!?) toda a realidade duramente vivida: “–Não sei o nome dele. Eu não o conheço. Não sei o nome dele”.


 Ficha Técnica:

Título Original: Ultimo Tango a Parigi
Tempo de Duração: 123 minutos
Ano de Lançamento (França): 1972
Estúdio: Les Productions Artistes Associés / Produzioni Europee Associati
Distribuição: United Artists
Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Bernardo Bertolucci e Franco Arcalli, baseado em estória de Bernardo Bertolucci
Produção: Alberto Grimaldi
Música: Gato Barbieri
Fotografia: Vittorio Storaro
Desenho de Produção: Ferdinando Scarfiotti
Figurino: Gitt Magrini
Edição: Franco Arcalli e Roberto Perpignani


 Elenco:

Marlon Brando (Paul)
Maria Schneider (Jeanne)
Maria Michi (Mãe de Rosa)
Giovanna Galletti (Prostituta)
Gitt Magrini (Mãe de Jeanne)
Catherine Allégret (Catherine)
Luce Marquand (Olympia)
Marie-Hélène Breillat (Monique)
Catherine Breillat (Mouchette)
Jean-Pierre Léaud (Tom)
Massimo Girotti (Marcel)
Veronica Lazar (Rosa)
Rachel Kesterber (Christine)




Por Lívio Oliveira*

[*Lívio Oliveira é Procurador Federal, escritor e poeta. É ex-Presidente da União Brasileira de Escritores do Rio Grande do Norte (UBE/RN). Também é membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN e do Comitê Diretor da Aliança Francesa de Natal/RN. Publicou os livros “O Colecionador de Horas” (2002), “Telha Crua” (2004), “Bibliotecas Vivas do Rio Grande do Norte” (2004), “Pena Mínima” (2007), “Dança em Seda Nua” (2009), além do CD “CINECLUBE” (2009). Ganhou os prêmios literários Othoniel Menezes (Funcarte- Natal/RN - 2004) e Luís Carlos Guimarães (FJA/RN-2004). Contribui e contribuiu, com seus textos, para diversos jornais e revistas.
Blog:- www.oteoremadafeira.blogspot.com]

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