domingo, julho 25, 2010


Sobre o curta metragem Sem Título

Um delicado manifesto em curta-metragem, que defende a vivência da liberdade e mostra a desobediência como virtude e potência.


“Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também,  até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.”
Machado de Assis, em Brás Cubas
Apresentando a menina Giovana
Não ter um nome logo associado ao que se vai ver, já é ter um título numa outra constituição condutora. Fizemos um novo curta que foi sendo pensado e trabalhado como se fosse um espelho quebrado, e que fossemos juntar os pedaços dentro de um espaço subjetivo de associações livres. O filme foi sendo construído na sua desconstrução interna. Dentro e fora do imaginário poético onde o essencial é o de ainda estarmos pensando, num mundo tão idiotizado destituído de sonhos. Ora, como dar um significado na não-significação dos pedaços isolados? Não pedaços para um filme a ser feito, mas a partir de modificações de imagens já feitas por Cristina Pinheiro e Andre Scucato, dotadas do valor afetivo. Ou seja, a partir de imagens já filmadas da menina Giovana Labella numa nova trajetória de contradições e alianças interrogativas.
Era preciso dar significação profunda a dissimetria de ideias e recursos. O já filmado era simples e afetuoso. O que fosse ser filmado implicaria numa nova abordagem que ia sendo olhado nessa dissociação de razões objetivas que fizesse pensar o espectro do stalinismo no Continente desigual. O filme teria que ser gestado na eterna imprevisibilidade da falta de dinheiro. Filmar com dinheiro é fácil. Já sem dinheiro algum é complicado. Mas nada foi omitido. Tanto o bom como o ruim. E se tudo é cinema, era preciso deixar fluir todas as contradições.
Fluir as ideias, o olhar, as imagens e as diferenças. E, por fim, a vitalidade do trabalho repousa nas dúvidas do “ser ou não ser” do velho Hamlet. Ser para sermos melhores. Ou não ser para nada ser. Nosso fio condutor foi uma vez mais o afeto. A primeira vista não nos parece um filme comum. E uma vez mais é construído entre múltiplas contradições em que a natureza sede seu lugar ao humano lado da criação. Portanto entre afetividades, três novos problemas se colocam: como lidar com as palavras, as imagens e a experimentação poética dialogando com a música e a história. E uma vez mais não caímos na comum gratuidade do cinema de mercado. Mantemo-nos fixados em rupturas, encontros e desencontros.
E numa desconexão com o fácil fomos pela contramão num favorecimento recíproco de afetos. Tivemos da produtora do Cinema de Poesia todo tipo de liberdade. Tanto para experimentar a tristeza ideológica de certas colagens, como de certas músicas eruditas, como a potencialização do olhar. Ou seja, fizemos um Curta-Manifesto, colocando o prazer no lugar das certezas. E então, tudo era possível: do desinteresse pela ordem tricotada pelos “podres poderes” da República à minha admiração por realizadores como Andrea Tonacci, Sergio Santeiro, Omar L. de Barros Filho (Matico), José Carlos Asbeg, Joana Collier, Isabel Lacerda, Marcelo Ikeda, Joel Yamaji, Fabio Carvalho, Ricardo Miranda, Joana Oliveira, Sindoval Aguiar... e não por acaso todos identificados com grandes desafios relacionados à história e à linguagem. Pode-se até não gostar dos nossos trabalhos, mas nenhum deles é insensível à ousadia. Até mesmo de errar.
$em Título deve ser entendido como uma vivência da liberdade, pura e simplesmente. Daí essa nossa postura de princípio lógico algum. Só o que conta é o nosso compromisso além dos limites impostos pela ordem dominante. Mas sem bravuras, bravatas ou sacrifícios – e sim com afetos. Chegamos aí num do doce Manifesto à desobediência. Desobediência num processo de aversão ao idiotismo do cinema de mercado. Aí coloca-se uma questão fundamental: por que os “filmes” precisam ser televisivos ou idiotas? Televisivos e idiotas que incorporam o capital, nunca o humano lado da criação. Mas é só um capital puramente de efeito, pois o mercado não é nosso e os “filmes” não se pagam na bilheteria. Então é uma farsa. E milhões e milhões vão sempre para os velhos e novos idiotas. Mas para fixarem o quê?  A violência, o espetáculo, a servidão e a impotência. Mas questionar o mercado ocupado pelo lixo de fora e de dentro, nem pensar!
Nosso curta $em Título passa por um outro registro, mais adequado a um uso criativo da desobediência como virtude e potência. Não queríamos contar uma historinha com princípio, meio e fim para nada dizer de substancial – nos esforçamos todos por um entrelaçamento associativo de questões básicas a serem pensadas. Em nosso sangue circulam Brecht, Artaud, Glauber... e temos orgulho disso. Razão pela qual não nos deixamos corromper pela imoralidade da obediência canina. $em Título é cinema! Cinema que se impõe como determinação da liberdade como questão fundamental.
Claro que não gostar é um direito inquestionável, e de modo algum usaremos o baixo recurso das “patrulhas”. Como sabiamente disse Fernando Pessoa em sua versão do “Fausto”: “A essência de mistério, o seu horror está não só em nada compreender, mas em não saber porque nada se compreende.” Cai como uma luva nesse desprezo contra o diferente, o saber, a linguagem e o humano. Nunca conseguiram perceber que o nosso compromisso sempre foi com o país, mas também com a linguagem e o saber. Nunca com o poder. Lá onde eles sempre estiveram para que nada fosse modificado. Adaptaram-se com facilidade a todo tipo de fascismo de ontem e de hoje. Eles, que sempre se alimentaram da prepotência, da mediocridade e da pequenez humana. Não à toa estão morrendo entre fracassos, tropeços, abusos e fascismos. A podridão irrompeu em sua história e ficou.
Não poderia ter sido diferente?
Fonte: O Autor e  Via Política

[Luiz Rosemberg Filho é diretor de cinema, escritor e artista plástico na cidade do Rio de Janeiro. Foi roteirista de Adyós General e Viva a Morte.

Dirigiu Assuntina das Amérikas, Crônicas de um Industrial e O Santo e a Vedete – até hoje inédito nos cinemas brasileiros. Um dos cineastas que melhor simboliza a criatividade que resiste na cinematografia nacional, atualmente dirige curtas-metragens em formato digital “para não enlouquecer”]

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